01/03/05

O melhor da Vieira do Mar

o meu marido

Dizer o meu marido, é-me tão natural como respirar. Sempre o foi, desde quando andávamos à bofetada pelas esquinas esconsas do colégio, a limpar o ranho à manga dos bibes.
Os nossos caminhos cruzaram-se mesmo quando tudo mas tudo fizemos para nos apartarmos, cientes embora da inevitabilidade magnética que sempre nos atraiu para as profundezas um do outro.

Somos dois astronautas de pés de chumbo em guerra com a falta de gravidade do amor, embora cientes da absoluta gravidade dos mergulhos constantes no vazio atmosférico da carne exasperada. Trepamos um pelo outro como se disso dependesse a nossa sobrevivência, encontramo-nos sempre a meio do caminho e, quando nos desviamos, chocamos um com o outro porque não cessamos de fugir para o mesmo impossível lado.

Nunca por nunca duvidámos de que os nossos destinos se entrelaçariam como cipós centenários e que acabaríamos a fazer bebés um com o outro e um para o outro, apesar dos choques frontais aos quais sobrevivemos trôpegos, da falta de airbags e da serenidade necessária à construção de uma vida qualquer coisa em comum. Também nunca tivemos juizo que bastasse e sempre reflectimos pouco nos passos de gigante que demos e nos lugares importantes onde aterrámos de mãos dadas e a pensar na morte de outras bezerras.

Esquecemo-nos amiúde das datas que importam e não usamos aliança no dedo porque nenhum de nós gosta de apertos. Reconhecemo-nos iguais desde o dia em que nascemos e até muito antes disso: somos almas gémeas que se reencontram uma e outra e outra vez, cumprindo um karma cósmico e um ritual de enamoramento perene, próprios de todas as almas resignadas que se sabem gémeas e não se importam.

Tanta porrada no rinque da vida e é certo e seguro que na próxima reencarnação viremos travestidos de insectos, daqueles com uma esperança de vida sazonal e irrisória, e se calhar cruzamo-nos algures numa folha, ele a subir e eu a descer, e o mais provável é desviarmo-nos para o mesmo lado, acabarmos por chocar e fazermos mais bebés, dando origem a uma espécie hibrida desconhecida da ciência, muito populosa e colorida. Mais certo ainda é acabarmos os nossos parcos dias a lambermo-nos os sucos esverdeados que nos escorrem das carapaças após termos sido esmagados por um transeunte gigante.

O meu marido, particípio passado do meu futuro longínquo, não é só o meu amor, o meu amigo, o meu companheiro e quaisquer outras balelas do género que me apeteça agora inventar: ele entranhou-se-me na pele desde o início dos tempos e pegou-se-me às entranhas desde o big bang primordial; se preciso for, como-lhe os olhos e os nervos ópticos dele entram-me que nem ginjas na corrente sanguínea.

Somos uma espécie de experiência científica de ADN modificado a espiralar pelo universo, a reboque de baba e vísceras; somos bichos selvagens que se catam pelas constelações fora, cão maior, ursa menor e vice-versa. Somos a saliva, os flatos, as crostas e as azias um do outro, e não há romantismo nem dia dos namorados que nos salve.


Não obstante, oferecemo-nos rosas e vamos ao cinema.

www.controversamaresia.blogspot.com
Soberbo!

2 Comentários:

Blogger Sol disse...

É SOBERBO que se escreve!

9:05 da manhã  
Blogger Lua disse...

Já corrigi! Muito obrigada!

2:32 da tarde  

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