17/04/05

Ode a um rio

Através de um copo de conteúdo duvidoso, olhei o rio. As luzes, as pessoas, o suave ondular da água negra salpicada de pequenos brilhantes. Os sons, os risos, as músicas entoadas com maior ou menor ritmo por quem passa. Os passos acertados, os cambaleantes. As nuvens de fumo que invariavelmente saem das bocas que passam, das bocas que ficam. Todas elas têm uma história para contar e eu, pela primeira vez desde que me lembro, tenho o todo o tempo para as ouvir, sereno, paciente. Trocam-se olhares, trocam-se sorrisos, trocam-se gestos e cumplicidades, planos de futuro, memórias do passado, vivências do presente. Não preciso de nenhuma delas para me lembrar quem eu sou ou esquecer o que perdi, mas sim para me recordar do tanto que tenho ainda para construir. Revejo os meus sonhos nas luzes que baloiçam e sorrio. Elas sorriem-me de volta. Volto a olhar o rio, inspiro aquele ar fresco e purificante que só a noite livre e pura tem. Nada mais quero do que ficar ali, eternamente, banhado no Mundo de sons, no Mundo de visões... sem pensar como vou chegar a casa esta noite, seja caminhando lentamente as calçadas da baixa até à minha porta soturna, ou amparado nos braços de alguém que me conforte e dê colorido a uma noite. É-me igual. De manhã continuarei a ser eu, as luzes estarão apagadas mas voltarão a acender, e os sons retomarão a lida diária. Estou no bom caminho quando tudo gira em perfeita harmonia, quando a água flui lentamente para o mar sobre os meus olhos, acompanhada de um sorriso sereno... de risos e gracejos de quem gosto e de quem me quer, com quem me sinto bem e sei que posso confiar, com quem disfruta a minha companhia tanto como eu disfruto a deles. Iluminado pelas candeias da noite, continuarei a trilhar o meu caminho, abrir horizontes, rever amigos uma e outra vez, despertar corações, traçar destinos. Traçar o meu destino, agora, desprendido de passados e esperas, ansioso pelo que a próxima esquina trará de novo, de bom, de mau, do que for. Enquanto houver luz sobre o rio, vozes sobre a calçada, pessoas sobre a noite, beberei dessas fontes sem esquecer, sem procurar quem preencha o lugar de ninguém, nem quem me guie pela mão qual inválido ou recém-nascido, perdido no Mundo. Todos temos o nosso espaço em cada um. Ódios. Amores. Amizades. Planos. Volto a pegar no copo e bebo mais um trago e penso... é bom estar aqui. É bom ser eu mesmo. Há quanto tempo ando eu perdido num mar sem luz e sem som? Longe das gentes, longe das vistas... longe de mim? Obrigado, rio, por me mostrares quem sou...