26/05/05

É Brutal ....

"Lembro-me de que fazia muito frio e estávamos há horas naquilo: curvas e mais curvas, um desconforto permanente, uma viagem interminável.
No Norte do Afeganistão não existiam propriamente estradas, mas umas picadas onde percorrer 200km pode demorar longas horas entre pó, minas, assaltos, paisagens tão inóspitas quanto belas e muita pancada que o mais bruto dos jipes roubados aos Russos transforma num lento amassar de todos os ossos.
O tradutor tinha ficado para trás e o condutor – um jovem tadjique de nome impronunciável a quem chamávamos Rashidi , e assim ficou até ao fim! – não dizia uma palavra de inglês.
Num ermo igual a tantos outros, como sempre sem água nem electricidade, decidiu parar. Protestei: a noite estava a cair e sentíamos pressa. Fez-me sinal com a mão de que precisava de comer. Acedi, então, contrariado, e recostei-me para descansar. O Rui tentou dormir, eu fiquei alerta, mas não por muito tempo: dois homens saíram dessa casa feita de terra e telhado de colmo, de metralhadora nas mãos, sorriso tosco nos lábios e convidaram-me a entrar. Recusei, simpaticamente, mas a insistência e a kalashnov fizeram-me, finalmente, mudar de ideias. Lá dentro, uns candeeiros a petróleo mas iluminavam uma sala suja, a cheirar a suor e a restos de uma comida que recusei provar. Por gestos e num dar inalcançável para mim, fizeram-me subir para um velho estrado onde costumavam rezar a Alá, e eu confesso – meio baralhado – já estava para tudo. Afinal era apenas um gasto tabuleiro de xadrez. Lembro-me que a rainha era uma velha e ferrugenta “carica”, os peões tinham sido substituídos por restos de palitos e o meu bispo era um invólucro de bala. E assim começámos a jogar.
“Amerikan?”, perguntou num sotaque carregado de quem não fala mais do que umas palavras de inglês, entre dois tragos de um chá verde forte, o único alimento seguro que nos mantinha vivos em três semanas de penúria. “Portugal”, retorqui uma e outra vez, até que Rashidi deu uma ajuda.
Entre um sorriso matreiro, a resposta do meu adversário foi fulminante: “Benfica!”.
Fiquei atónito, estupefacto.
Ali, num local medieval, num país em que a chegada ao poder dos talibã tinha proibido coisas tão banais como ouvir música, escutar rádio, ver televisão ou jogar futebol, este homem de cujo cabelo sujo e ar esquálido conhecia o Benfica.
Ali, em que o tempo tinha parado e a vida não valia mais que uma mão-cheia de nada, onde até o estádio de Cabul servia agora para execuções públicas, aquela personagem de barba escura, dentes podres, e que gostava de xadrez sabia quem era Eusébio, Figo e Rui Costa e mostrava admiração pelo Benfica.
Dei por mim a pensar se teria visto mesmo o “Pantera Negra” jogar ou, como eu, demasiado novo para assistir in loco à magia de Eusébio, se ficou pela memória dos jogos que ainda hoje impressionam. Perguntei-me até se alguma televisão Russa – a única que durante anos alimentou o imaginário de um dos povos mais pobres do Mundo – tinha por uma só vez mostrado aquele mágico golo de Vata, aquela mão que empurrou o Benfica para a final da Taça dos Campeões Europeus e o Marselha para uma azia interminável, já o relógio escorregava para o fim, quebrado numa explosão de alegria de 120 mil pessoas, num âmago colectivo como eu nunca imaginei possível. Ou por que não, aquela outra noite inesquecível, aquela em Leverkusen em que a derrota parecia certa, tão certa como o travo da frustração, até que Kulkov e Rui Costa decidiram mudar o destino e virar o resultado do jogo. Ah, tantas são as histórias de um Centenário, tantas e variadas que até lá cabem as outras: as da tristeza e da mágoa, as da inexplicável dor informe que, diga-se, também em muito revelavam a grandeza do Benfica. Não, não falo dessa derrota em Alvalade por 7-1. Essa foi vingada no mesmo ano com o campeonato, 5-0 para a taça. Arrepio-me, sim, quando relembro a final da taça dos Campeões e o fatídico penalty falhado pelo capitão Veloso, em Viena de sair da velha Luz de lágrima ao canto do olho quando os belgas do Anderlech empataram a partida e nos roubaram a Taça UEFA. E recordo, com invulgar revolta, uma derrota singularmente pesada em Vigo, que me encheu de raiva, de frustração e de vergonha. Parecia um pesadelo interminável.
Mas como dizia há pouco, esses são também momentos de dor e paixão que fazem história e história de um grande clube. Ah, e quase me esquecia: perdi o jogo.
Por cortesia, por espanto, por respeito a Kalashnov. Mas isso também pouco importa. Eu até já tinha tido o meu xeque-mate: reconciliei-me com a viagem e esse tal ermo sórdido que nem do nome recordo. Daí até abandonar Afeganistão em guerra, Rashidi sorria e dizia “Benfica” com o polegar para cima e levava depois a mão ao coração, baixando a cabeça em sinal de respeito e afecto.

Sei, quase definitivamente, que também tu nunca verás ao vivo a “Nova Catedral”, mas deixa lá que eu torço pelos três."

Pedro Pinto, jornalista da TVI

3 Comentários:

Blogger Richie disse...

GRANDE GRANDE GRANDE TEXTO!!! GRANDE TEXTO MESMO!!!

Parabéns ao Pedro Pinto e a quem o postou!

O BENFICA é mais que uma religião, é mais que uma nação, é mais que um estado de alma. O Benfica é sangue e vida em mim, em ti, naquele, no outro, aqui e ali, e mais além, o Benfica é mística, emoção, paixão, muito para além da razão!

E curvo-me respeitosamente e saúdo a memória de Cosme Damião!

E PLURIBUS UNUM! E VIVA O CAMPEÃO!

12:56 da manhã  
Blogger Lua disse...

Oh Richie... Bem... Permite-me discordar de ti. é que mais me parece que estás a falar de um MULHER. Nunca de um clube de futebol onde 11 macacos xutam à bola e ganham milhoes...

4:13 da manhã  
Blogger ZeoX disse...

O Benfica não é grande, é mesmo ENORME. Apenas passível de ser compreendido por quem o sente... :]

Magnífico texto!

4:31 da manhã  

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