30/08/05

Ela escreveu...

***
"Pensar antes de...

Os homens e as mulheres muitas vezes lançam-se numa aventura sentimental sem se questionarem sobre onde é que ela, realmente, os vai levar. Eu acho que todos nos devíamos perceber que uma relação amorosa só tem sentido se pudermos construir algo sólido e duradouro com o nosso parceiro. Devíamos procurar ver se existe com o nosso parceiro uma harmonia nos três planos – físico, afectivo e mental – ou se estamos somente a ceder a um capricho passageiro, á atracção do prazer. Se não temos afinidades no domínio das emoções, dos gostos e das ideias, não devíamos pensar que isso não tem qualquer importância e que as coisas se resolverão com o correr do tempo. De modo nenhum, pelo contrario; ao fim de algum tempo, quando se esgotou a novidade de certos prazeres, percebe-se precisamente que as afinidades psíquicas, intelectuais, são extremamente importantes, e se essas afinidades não existirem instala-se a discórdia, e onde se julgava encontrar a alegria e a dilatação só se encontra desilusões e tormentos."
From: Musician
***
...eu concordo.
Por mais que o sentimento se eleve ao ponto mais alto do céu, corre sempre o risco de descer em queda livre ao darmo-nos conta de que por vezes o amor não chega, não nos dá tudo o que precisamos. A concretização de um sonho é brutal, mas apenas até aquela imagem de plenitude amorosa, de casal perfeito, de amor completo se despir. E quando realmente vemos tudo claramente, por vezes sorrimos, por vezes choramos. Daí a necessidade das certezas antes de qualquer decisão... O mais importante não é se a pessoa que julgamos amar tem muitas afinidades connosco, mas sim se aquelas que não tem podem vir no futuro a criar as tais desilusões e tormentos.

Por um dia...

"Perguntares como é que eu estou
Não é quanto baste
Quereres saber a quem me dou
Não é quanto baste

E dizeres pra ti morri
É um estranho contraste
Nada mais te liga em mim
Tu nunca me amaste

Telefonas pra saber
Como vai a vida
E mais feres sem querer
Minha alma ferida

E assim dá à minha dor
Pássaro ferido
Que nao esquece o teu amor
Estranho e proibido

Deixa-me só, por um dia
Deixa-me só, por um dia
Minha fria companhia
Minha fria companhia

Dizes ser tao actual
Ficarmos amigos
No teu jeito natural
De enfrentar os perigos

Sem saberes que dentro em mim

Ainda arde a chama
Que nao perde o seu fulgor
E ainda te ama

Deixa-me só, por um dia
Deixa-me só, por um dia
Minha fria companhia
Minha fria companhia"

23/08/05

Aquela Força

É mais forte do que eu. Quando estou contigo e te olho nos olhos, não consigo deixar de vasculhar o mais fundo da tua alma, fazendo com que desvies o olhar. Incomoda-te... mas não consigo evitar olhar dessa maneira. Não consigo evitar pegar na tua mão e apertá-la como se fosse a última vez que a segurasse... beijá-la devagar, por vezes. Não consigo deixar de brincar com o teu cabelo, desviá-lo da tua face, prendendo-o atrás da tua pequena orelha para admirar a suavidade do teu rosto. Por vezes não posso evitar passear os meus dedos... pelas tuas pálpebras, lábios ou outra zona cutânea indiscriminada... não consigo. Saem-me naturalmente palavras e gestos que nada mais mostram do que a força que me impele contra o teu ser... desejos escondidos que afloram como brincadeiras que pela razão sabem que não podem ser, ainda, reais...

Mas é assim que sou, assim que me fizeste...

21/08/05

Cântico Negro

"Vem por aqui" — dizem-me alguns com os olhos doces
Estendendo-me os braços, e seguros
De que seria bom que eu os ouvisse
Quando me dizem: "vem por aqui!"
Eu olho-os com olhos lassos,
(Há, nos olhos meus, ironias e cansaços)
E cruzo os braços,
E nunca vou por ali...

A minha glória é esta:
Criar desumanidades!
Não acompanhar ninguém.
— Que eu vivo com o mesmo sem-vontade
Com que rasguei o ventre à minha Mãe.

Não, não vou por aí! Só vou por onde
Me levam meus próprios passos...

Se ao que busco saber nenhum de vós responde
Por que me repetis: "vem por aqui!"?
Prefiro escorregar nos becos lamacentos,
Redemoinhar aos ventos,
Como farrapos, arrastar os pés sangrentos,
A ir por aí...

Se vim ao mundo, foi
Só para desflorar florestas virgens,
E desenhar meus próprios pés na areia inexplorada!
O mais que faço não vale nada.

Como, pois, sereis vós
Que me dareis impulsos, ferramentas e coragem
Para eu derrubar os meus obstáculos?...
Corre, nas vossas veias, sangue velho dos avós,
E vós amais o que é fácil!
Eu amo o Longe e a Miragem,
Amo os abismos, as torrentes, os desertos...

Ide! Tendes estradas,
Tendes jardins, tendes canteiros,
Tendes pátria, tendes tetos,
E tendes regras, e tratados, e filósofos, e sábios...
Eu tenho a minha Loucura !
Levanto-a, como um facho, a arder na noite escura,
E sinto espuma, e sangue, e cânticos nos lábios...

Deus e o Diabo é que guiam, mais ninguém!
Todos tiveram pai, todos tiveram mãe;
Mas eu, que nunca principio nem acabo,
Nasci do amor que há entre Deus e o Diabo.

Ah, que ninguém me dê piedosas intenções,
Ninguém me peça definições!
Ninguém me diga: "vem por aqui"!
A minha vida é um vendaval que se soltou,
É uma onda que se alevantou,
É um átomo a mais que se animou...
Não sei por onde vou,
Não sei para onde vou
Sei que não vou por aí!

José Régio

20/08/05

Romantismo compulsivo

Tenho que eternizar este momento. É daquelas coisas que nos passam pela cabeça como um flash e depois ficamos a rir delas. Para a "menina da rádio":

"Uma tarde romântica contigo seria algo como passearmos numa Kangoo amarela, a ouvir Toranja, irmos até um café beber Pleno chá verde e voltarmos para casa ao fim da tarde para ainda apanharmos o Family Guy na TV."

Ai, enfim.

19/08/05

Relembrar

Voltei àquele quarto onde nos juntámos de corpo e alma. Está tudo mudado, a cama é outra, a mobília está diferente, as paredes foram alisadas e pintadas. Só o chão continua a ser daquela madeira velha que range e parece cair a qualquer momento... Ainda me recordo da loucura da entrega e da ternura do cuidado a cada toque... Apesar de tudo, foi especial. Sempre o será. No fim da tarde sorrimos e demos as mãos, no começo de uma nova etapa... em que tudo era puro, sincero e apaixonante.

Depois vieram os medos.

O resto é história... mas sabe bem relembrar...

Fugindo dos corações...

O novo álbum dos Toranja está repleto de músicas cujas letras me assentam que nem uma luva. Cá vai mais uma. Para ouvir em loop interminável...

"Era eu a convencer-te que gostas de mim

e tu a convenceres-te que não é bem assim...
Era eu a mostrar-te o meu lado mais puro
e tu a argumentares os teus inevitáveis

Eras tu a dançares em pleno dia
e eu encostado como quem não vê
Eras tu a falar para esconder a saudade
e eu a esconder-me do que não se dizia

... afinal quebrámos os dois...

Desviando os olhos por sentir a verdade
juravas a certeza da mentira
mas sem queimar demais
sem querer extinguir o que já se sabia

Eu fugia do toque como do cheiro
por saber que era o fim da roupa vestida
que inventara no meio do escuro onde estava
por ver o desespero na cor que trazias...

... afinal quebrámos os dois...

Era eu a despir-te do que era pequeno
e tu a puxares-me para um lado mais perto
onde contamos histórias que nos atam
ao silêncio dos lábios que nos mata...!

Eras tu a ficar por não saberes partir...
e eu a rezar para que desaparecesses...
Era eu a rezar para que ficasses..
e tu a ficares enquanto saías.
... não nos tocamos enquanto saías.
não nos tocamos enquanto saímos.
não nos tocamos e vamos fugindo
porque quebramos como crianças

...afinal quebrámos os dois...

...e é quase pecado o que se deixa...
...quase pecado o que se ignora..."

Toranja - Quebrámos os Dois

18/08/05

Voltando a casa

Ouvi-te rir e dizer "a vida tem muitos caminhos, se olhares à volta terás sempre por onde escolher... o coração, contudo, raramente nos dá mais do que uma saída". Aí entendi as tuas escolhas... tanto te dá por onde a vida te leve mas sabes bem aquilo que tens seguro, não é? Invejo-te por isso, no sentido de te ver feliz e partilhar da tua alegria. Às vezes gostava de me sentir como tu, sabes. Quando queres voar não te atiras de cabeça no primeiro precipício que encontras, saltando para uma falsa sensação de liberdade onde fazemos o que queremos e nada mais importa senão nós próprios. Tu sabes bem que não é assim, certo? Sabes que não vale a pena voar sozinho se não tiveres alguém com quem possas partilhar o que vês e sentes. E aí, dás a mão ao caminho que escolheste rumar e és verdadeiramente livre, sorrindo ao lado de quem sorri contigo. "Há algo melhor?", perguntas-me. Esboço um pequeno sorriso por entre um olhar meio turvado de pequenas lágrimas que querem sair e respondo "não... não há mesmo!"

Desejamos boa noite um ao outro. Tu voltas para o teu castelo no cimo do monte, eu regresso à cabana à beira-rio, vendo a água passar. Por entre o barulho do ribeiro ainda te consigo ouvir desejar que eu seja um pássaro e um dia voe também...

17/08/05

Ficção II

Sábado.

Estou farto de políticos até aos olhos. Tanta gritaria, tanto bailarico, tanta multidão em festa... perdão, "festa" e depois ficamos todos na mesma. A mesma incapacidade, a mesma inconsistência, a mesma porcaria de sempre. De quatro em quatro anos, o mesmo circo. E lá ando eu, qual cãozinho atrás do dono... de terra em terra a cobrir os arraiais. Pelo menos sou bem pago por estas fotografias... e pelos quilómetros que faço.

É Sábado. São quatro da tarde e sou a única pessoa na redacção a esta hora. Sábado... deve estar toda a gente enfiada nos shoppings onde pelo menos não chove, e eu aqui, às voltas com o photoshop. E sem tabaco. E sem trocos. Podia o meu dia ficar pior?

Telemóvel. Carla? Penso duas vezes antes de atender...

"- Estou sim?"
"- Olá Rafael. É a Carla."
"- Sim, o telemóvel fez questão de afirmar isso mesmo... o que queres?"
"- Estúpido. Tu e o teu sentido de humor distorcido. Não mudaste nadinha."
"- Obrigado. Afinal, ligaste-me para quê? Já não falamos há meio ano..."
"- Para saber como estavas."
"- Bem."
"- Óptimo."
"- Então adeus."

Ouve-se um clique e a chamada termina abruptamente. Que coisa estranha. Só me faltava mais esta... os meus fantasmas levantarem-se da campa quando estou no fundo do poço. Preciso mesmo de um cigarro... pego na chave e desço ao rés-do-chão. Ao lado do edifício do jornal, há um pequeno café onde costumo... perdão, costumava, ir comprar o jornal... e sentar-me a ler, de manhãzinha, antes de ir para o emprego. Bons tempos...

Troco dez euros em moedas e aproveito para levar um maço de tabaco para a viagem. Fumo um cigarro ainda antes de chegar ao escritório. Quando chego, vejo que deixei o telemóvel em cima da secretária. Mensagem... Carla, claro.

"Continuas tão estúpido e irónico como sempre. Não sei como pude gostar de ti. Odeio-te."

Levanto ambas as sobrancelhas em sinal de espanto. "- Porreiro para ti.", digo em voz baixa. Não me digno a responder. Já me conseguiu enervar... sinto as mãos a tremer... puxo mais um cigarro e tento concentrar-me no ecrã de computador. O tempo passa. O maço esvazia até que dou o meu trabalho por terminado. Lá fora, parece que parou de chover... e já é noite. Oito horas... fiquei de ir jantar com o Marco e uns amigos nossos... amigos, como quem diz.

Amigos são outra coisa.

Não considero meus amigos quem só vejo de vez em quando e com quem vou tomar uns copos... com quem falo de banalidades desde o tempo ao tamanho das mamas da vizinha do 3º E. Que coisa tão fútil. O que são amigos a sério? Devo ter mesmo muito poucos. O Marco. A Márcia e o noivo dela, o José... muitas horas passei com eles. A Cristina... há algum tempo que não a vejo... quem mais? Do meu passado distante já ninguém resta... e está frio, hoje.

Pego no telemóvel... procuro na agenda "Isabel". Marco... não dá sinal. Ainda deve estar por Espanha, claro...

Olho para cima e vejo as estrelas por entre o fumo do tabaco... "Tenho mesmo saudades tuas, garota..."

"- Rafael! Rapaz, então? Estás atrasado..."
"- É... desculpa lá, Marco.. trabalho até tarde no escritório, hoje... estive a antecipar as fotografias para a edição de segunda."
"- Estás pálido."

Raios partam a percepção deste gajo.

"- Tive uma surpresa hoje à tarde. A Carla ligou-me."
"- Ligou? A sério? O que é que ela queria?"
"- Saber como eu estava. Fui seco com ela e desligou-me o telemóvel na cara. Depois enviou-me uma mensagem a insultar-me... e foi isso."
"- Ahahaha! Fizeste bem... ouve bem o que eu te digo... gajas dessas não valem a pena, só dão problemas."

Eu que o diga...

"- Mas tu sabes que eu e a Carla temos uma história longa... e meia conturbada."
"- É... tipo... andaram quanto tempo? Três anos? Depois disso encontram-se de vez em quando, dão umas, separam-se, etc. ?"
"- Mais ou menos isso."
"- Desculpa perguntar-te isto, mas... alguma vez traíste a Isabel com a Carla? Isto é... antes de resolveres deixar a rapariga de vez?"
"- Não... nunca. Eu nunca traí a Isabel."
"- És um gajo às direitas. Anda, o pessoal está à espera junto do israelita. Queres comer por lá?"
"- Pode ser. Com a fome que estou acho que até comia cão assado."

A noite passa. As conversas são as do costume... Mas a minha cabeça está noutro lugar. Porque voltaste após todo este tempo, Carla? Para me azucrinar? Não chegam já as lágrimas que fizeste rolar em todos os anos que estivemos juntos? Que raiva que tenho de ti... Que vontade de voltar para casa...

Continua...

16/08/05

Ficção I

Inspiro o ar fétido do meu quarto... tento abrir os olhos mas sou vencido por uma lacinante dor na nuca, sem dúvida efeitos da noite anterior... não me consigo levantar e volto a afundar a cabeça na almofada, ainda de olhos fechados. Nova tentativa. A custo, lá consigo olhar para o mostrador digital do despertador... dez horas? "- Raios... voltei a adormecer..."

Volto-me para o outro lado, tentando ganhar forças para me levantar a tempo de chegar ao emprego antes da hora de almoço. Vai ser a segunda vez nos últimos quinze dias que me atraso barbaramente... Só espero não receber o ordenado deste mês como sendo o último. Dou uma rápida vista de olhos à mesinha de cabeceira... o cinzeiro está a transbordar, a garrafa de whisky velho está vazia, mas o copo ainda tem um resto... que se lixe. Bebo o que falta de um trago... uma boa maneira de começar o dia.

Dez e meia. Finalmente levanto-me da cama e arrasto a minha carcaça dorida para a casa de banho. Pareço um cadáver. Tenho que me despachar, não há tempo para fazer a barba... visto à pressa uma qualquer camisa, já que todas me parecem iguais, e as mesmas calças amarrotadas da última semana. Gravata... não... tenho a visão demasiado turva para fazer o nó... pego na velha gabardine castanha e saio à rua em jejum. Não pára de chover há quase cinco dias... adoro este tempo. Faz-me sentir cinzento, soturno... sinto-me bem assim.

Dou uma corrida atabalhoada até à paragem de autocarro, chapinhando pelo passeio inundado. Ignoro alguns impropérios que uma senhora de idade me atira quando lhe encharco a saia. Temos pena. Por sorte (ao menos que algo corra bem hoje), chego mesmo a tempo ao autocarro... puxo de um cigarro e espero pacientemente pela saída...

"- É a segunda vez, Rafael."
"- Eu sei, sr. Marques. Deixei-me dormir de novo... não volta a acontecer."
"- A mim preocupa-me mais o teu bafo a álcool. Há algo que me queiras contar?"

Feliciano Marques. O editor-chefe do Diário Nacional armado em figura paternal. Mas quando quer, sabe ser um bom filho da puta. Não lhe vou dizer nada, claro, não tem nada a ver com a minha vida. Mas acho que não me vai despedir. Ainda.

"- Não, sr. Marques... é só uma fase. Isto passa."
"- Então vai trabalhar um pouco. Ainda são onze e um quarto... e pelo amor de Deus, aproveita a hora de almoço para fazer a barba, estás miserável."

Murmuro qualquer coisa menos própria e saio da sala do editor. Olá secretária. Desarrumada como sempre... Sento-me em frente ao computador a fazer o layout das minhas fotos de quarta-feira. Preciso de um café... rápido. Dirijo-me à máquina mais próxima e encosto-me a ela, à espera do líquido divinal... entretanto vou ouvindo a conversa dos meus colegas de redacção que também vieram à busca de algo que os espevite. Típico. O Raúl anda a comer não sei quem... e gaba-se de já ir na terceira este mês. Que futilidades. Pego no meu copo de plástico com o café e vou-o sorvendo de volta à minha secretária.

O tempo passa... tédio. Uma da tarde. Hora de almoço... para variar com o Marco, na tasca ali ao lado. O Marco é um sujeito engraçado. Conheço-o há varios anos... e começou por ser um tipinho irritante. Com o tempo, acabei por gostar da maneira de ser dele. Está sempre a confrontar-me comigo próprio, com as asneiras que faço, de uma forma bastante pungente. Mas é saudável, acaba por ser bastante introspectivo estar com ele. Hoje, já sei que vai pegar comigo pelo meu aspecto. É inevitável.

"- Ei! Rafael! Jesus, pareces um zombie, rapaz! Que se passa?"
"- Coisas da vida. Hoje não me apeteceu fazer a barba..."
"- E pelos vistos o pequeno almoço foi pesadinho, ein? Porra, meu... Pareces um trapo. Conta-me lá..."
"- Não há grande coisa para contar, Marco. A sério."

Puxo de um cigarro enquanto o Marco fica visivelmente agastado.

"- Foda-se. Andas outra vez numa fase deprimente por causa da outra gaja? Já lá vai quase um ano, rapaz... já era altura de seguires com a tua vida. E também podias deixar essa merda, qualquer dia morres com um cancro qualquer."
"- Todos temos de morrer de alguma coisa, não é."
"- Por essa ordem de ideias tínhamos os putos todos a cometerem suicídio em massa..."
"- Não sejas idiota."
"- O que vais pedir?"
"- Prego no prato..."
"- Dois pregos, faça favor! Rafael... tu ouve o que te digo. O que lá vai, lá vai... a gaja agora é feliz com outro... mentaliza-te disso e segue a tua vida!"
"- É fácil falar, mas não foste tu que fizeste asneira... que deixaste algo que tinhas seguro e com o qual até te sentias bem por um... momento de fraqueza qualquer."
"- Ai a Clara foi um momento de fraqueza? Eu só te ouvia dizer que a amavas e que tinhas deixado a Isabel por causa dela..."
"- Pá... pensava que sim. Fiz asneira... Acontece."
"- E aconteceu ficares sozinho uns meses depois... a Clara não era flor que se cheire."
"- É uma puta. Tanta jura de amor, de repente fica fria como um cubo de gelo, acabamos, e no fim de semana a seguir já anda a comer outro."
"- As mulheres são assim, precisam de umas quecas para lhes levantarem o ego. E ainda falam de nós..."
"- Acredita nisso... Marco... eu não entendo, como pude ser tão estúpido. Com a Isabel sentia-me no topo do Mundo... podia não ser tão arrebatador como... antes, mas... sentia-me bem, sabes? Não precisávamos de conversas inteligentes nem de passar as noites inteiras a fazer amor... Havia uma cumplicidade..."
"- E achaste por bem trocar isso por algo que te parecia melhor."
"- Achei... quantas vezes aquilo que queremos para a nossa vida acaba por se transformar numa enorme desilusão? Bem que me avisaram..."
"- Mas não deste ouvidos, pois não? Quiseste fazer as coisas só à tua maneira e depois acabaste por perder tudo..."
"- O que lá vai, lá vai. Mas, porra... ainda gosto dela. Tanto."
"- Que é feito da Isabel, afinal?"
"- Da última vez que falei com ela, estava a caminho de Barcelona... ia fazer uma exposição num museu qualquer... as pinturas dela estão a fazer sucesso. E pensar que tudo começou com umas coisas em photoshop que ela pôs online..."
"- É, quem diria... o namoradinho dela também foi?"
"- Não, ele ficou cá."
"- Podias ir a Barcelona, pedir ao teu chefe que te mandasse numa reportagem qualquer lá."
"- Esta semana estou tapado... ando a cobrir as eleições autárquicas. Vou ficar até Sexta a viajar para cá e para lá pelo centro do País..."
"- Vida lixada. Quando é que ela volta?"
"- Não sei... acho que ia demorar uns quinze dias..."

Acabo o meu quarto cigarro e o almoço.

"- Quando ela voltar, talvez fale com ela... tomar um café, sei lá. Logo se vê."
"- E se ela aceitar?"
"- Logo se vê."
"- E a Carla?"
"- Quero que ela se foda. Já deve ter rodado metade de Braga por esta altura..."

O Marco ri-se da minha saída, mas eu não consigo rir. Acho que no fundo, no fundo também gosto da Carla, apesar de ela me magoar uma e outra vez, a cada encontro. Foi a minha primeira paixão... e de algum modo acho que vamos estar sempre ligados. Vai ser sempre uma sombra no meu amor pela Isabel... amor esse que deitei fora. Não há dia que não amaldiçoe a minha estupidez...

"- Bem, vou trabalhar. Tenho que estar às três e meia em Penacova... comício não sei de quem."
"- Fazes bem... epá, e tem cuidado... isso da bebida e do tabaco... dás cabo de ti. Ninguém vale o que estás a fazer a ti mesmo..."
"- É... logo largo os vícios."
"- Dizes o mesmo há três meses... bem... até depois. Cuidado com as poças."
"- Até."

Subo a gola da gabardine e puxo do último cigarro do maço. Ainda bem que não parou de chover.

Continua...

14/08/05

Para que saibas e sonhes...

Era o primeiro dia na faculdade e sentia-me noutro mundo. Do liceu as memórias estavam apagadas, já que tanta era a vontade de fugir. Deparei-me então com um grande prédio cinzento, de grandes janelas, onde jamais tinha entrado. No muro ao lado, duas caloiras sentadas, decerto tinham acabado de se conhecer. Também eu era caloira e, logo ao entrar a porta, fiquei de quatro. Estranho, na altura.
Mas não era sobre a praxe que queria falar, era sobre Ti. Creio que nos conhecemos no primeiro dia, e logo aí te achei um pouco estranho. Com o tempo, fui mantendo essa opinião, baseada em muitas das tuas atitudes. Talvez não entendesse porque atiravas beijos pelo ar e dizias que me amavas a mim, e a algumas outras colegas; muitas vezes falavas em espanhol. E eu ria simplesmente da tua figura. Espontaneidade? Brincadeira? Talvez.
Descobri depois seres capaz de uma boa conversa. Coerente, até. Coisa rara hoje em dia! Tens sempre um pouco de tempo para me elogiar, para me mostrares que ainda posso gostar de mim. Um dia deixaste-me uma frase que nos uniu no nosso maior sonho. Nunca esquecerei.
Percebi que por detrás daquelas atitudes que todos olhavam como actos de loucura estava uma pessoa fantástica e bastante madura.
Admiro, a cima de tudo, a tua coragem para lutares por um sonho contra todas as distâncias, contra um oceano, contra qualquer um que te chame louco. Não és louco, não. Sonhas e lutas. Só assim chegarás lá. Continua a ultrapassar qualquer barreira, mesmo no domínio do quase-impossível, por aquilo que queres. Valerá a pena.

11/08/05

Não é assim?

Não te amo

Não te amo, quero-te: o amor vem d'alma.
E eu n 'alma – tenho a calma,
A calma – do jazigo.
Ai! não te amo, não.

Não te amo, quero-te: o amor é vida.
E a vida – nem sentida
A trago eu já comigo.
Ai, não te amo, não!

Ai! não te amo, não; e só te quero
De um querer bruto e fero
Que o sangue me devora,
Não chega ao coração.

Não te amo. És bela; e eu não te amo, ó bela.
Quem ama a aziaga estrela
Que lhe luz na má hora
Da sua perdição?

E quero-te, e não te amo, que é forçado,
De mau, feitiço azado
Este indigno furor.
Mas oh! não te amo, não.

E infame sou, porque te quero; e tanto
Que de mim tenho espanto,
De ti medo e terror...
Mas amar!... não te amo, não.



Almeida Garrett

10/08/05

Lágrima

Dos olhos me cais,
redonda formosura.
Quase fruto ou lua,
cais desamparada.
Regressas à água
mais clara do dia,
obscuro alimento
de altas açucenas.
Breve arquitectura
da melancolia.
Lágrima, apenas.

Eugénio de Andrade, 1923-2005

03/08/05

Onde estão?

"Andamos em voltas rectas na mesma esfera,
Onde ao menos nos vemos porque o fumo passou
e a chuva no chão revela os olhos por trás.
Há que limpar o restolho do que o tempo queimou


Tens fios demais a prenderem-te as cordas
Mas podes vir amanhã acreditar no mesmo Deus
Tenho riscos demais a estragar-me o quadro...
Se queres vir amanhã acreditar o mesmo Deus...


Devolve-me os laços, meu amor...


Andamos em voltas rectas na mesma esfera
Mas podes vir amanhã, se queres vir amanhã, podes vir amanhã
Tens riscos demais a estragar-me a pedra
mas se vieres sem corpo à procura de luz


Devolve-me os laços, meu amor..."

Toranja - Laços

01/08/05

Clocks

Sabes Bem

Sabes bem que estarei sempre contigo,
nas tempestades e nas horas calmas,
que todas as palavras que te digo
saem das profundezas da minha alma.

Sabes bem que em mim tens o ombro amigo
que falta a tanta gente e dá origem
ao mal do mundo, acentuando o perigo
da súbita cedência ante a vertigem.


Mas, como o amor nem sempre é uma troca,
embora saiba tudo o que tu sabes,
não alimento grandes ilusões.

Eu só quero, afinal, da tua boca
os risos e as palavras mais suaves
para todas as minhas estações.

( Torquato da Luz , 2005 )